Luiz Recamán

Otávio Paz dizia que a poesia é uma operação capaz de mudar o mundo, é revolucionária por natureza; em certo sentido, é uma oração, uma prece ao vazio, um convite à viagem, um diálogo com a ausência, magia. É um “caracol que ressoa a música do mundo”. 

Em certo sentido, este grupo de pesquisa, que chamamos carinhosamente de apenas “NEC”, foi criado de modo a dar vazão a esta música do mundo que ecoava e inquietava, como se clamando por um violão ou uma flauta para ser tocada. Foi assim que, em 2006, ele foi vislumbrado pelos professores do então Departamento de Arquitetura e Planejamento da EESC, atual Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Luiz Recamán e Ruy Sardinha. Formulado inicialmente como um grupo de estudos de estética e arquitetura (GEA), as discussões sobre o Belo, o Sublime e o Horror à luz da cena contemporânea marcaram a retomada da interlocução e aflições que os dois amigos e professores mantinham desde o tempo da graduação na FFCLH, inspirados pelas lentes de Otília Arantes, que mais tarde viria a se tornar a orientadora de ambos.

No começo, não importava tanto se não houvesse público para assistir ou mais pessoas interessadas em participar das discussões. Em certo sentido, poderia ser como aquela espécie de diálogo com o vazio; em algum outro momento, as vozes deste solo ou dueto haveriam de se transformar em coro. A poesia tem esse tanto de fé mesmo.  

Pouco tempo depois, o grupo de estudos se institucionaliza como Núcleo de Estudos das Espacialidades Contemporâneas, nome também da disciplina oferecida por ambos no Programa de Pós-graduação do IAU. Hoje, quase 20 anos depois, o NEC viu florescer essas sementes carinhosamente plantadas, com uma diversidade de pesquisadores, professores, alunos, ouvintes, e podemos, de fato, dizer, com uma boa dose de alegria e orgulho, o quanto esse coro-caracol compõe-se já em uma canção sólida, cuja melodia entremeia-se por diversas vozes e arranjos.

Mas, é também hoje, com praticamente a mesma dose invertida em desalento, que anunciamos a passagem daquele que foi um dos idealizadores do grupo, o nosso querido Luiz Recamán. 

Recamán, como os alunos costumavam chamar, foi professor em São Carlos de 2003 a 2010, participando da formação de diversos alunos de graduação e da pós-graduação. Era conhecido e lembrado, mesmo anos após sua saída do IAU, por suas aulas eloquentes e profundas, por seu humor preciso, por sua generosidade na relação com os alunos e orientandos, por sua humildade no tratamento com as pessoas. Não tinha receio de falar “eu também não sei” ou “eu também precisava entender melhor” sobre determinado assunto. Ao mesmo tempo, era certo consenso a menção ao Recamán como um dos professores mais brilhantes e sensíveis que o IAU já teve. 

Suas orientações eram sempre momentos de verdadeiras sínteses e lampejos – ele era capaz de organizar aquele caos presente em cada microcosmo de inquietações – comuns em pesquisas acadêmicas – em um raciocínio linear; em linguagem, afinal. Assim, conseguia lapidar em nós nossa própria potência e ajudava-nos a entender nossas próprias angústias. 

Suas palavras, sejam proferidas em aulas, conversas ou orientações, impactavam para muito além dos limites da sala de aula ou do universo acadêmico: elas levavam muitos (de nós), com uma mistura de admiração – por sua facilidade e clareza na articulação das ideias – e estupefação, dada a densidade dos conteúdos discutidos – cuja compreensão parecia demasiadamente volátil para um mero mortal – a questionar nossa relação e nosso papel neste mundo que se apresenta tal como está. Pois é certo que elas causavam um descentramento de nós mesmos, absolutamente necessário para que qualquer transformação se torne possível. 

Por isso, com esse misto de tristeza e inconformismo, de carinho e saudade, cientes de que nenhuma nota é capaz de abarcar a riqueza do percurso de um indivíduo ou a dimensão de seu legado, manifestamos aqui, em nome do NEC, nossa profunda e eterna gratidão ao nosso querido Luiz Recamán, com a confiança de que seus ensinamentos, suas palavras e seu jeito de ser – sua poesia, enfim – continuarão ecoando das mais ricas e diversas formas em todos nós.